A tradição que antecede o Budismo e guarda o sopro original dos deuses invisíveis
Antes que o Budismo Vajrayana moldasse o Tibete com seus mosteiros, mantras e lamas, havia uma antiga espiritualidade que respirava entre os picos nevados, os lagos sagrados e os oráculos do povo nativo. Essa tradição era o Bön, um caminho espiritual que antecede o Budismo Tibetano, mas que com ele dialoga, se entrelaça e permanece até hoje como uma joia oculta da história religiosa da humanidade. Neste artigo, vamos mergulhar nas raízes profundas do Bön, conhecer sua cosmogonia, suas práticas xamânicas e místicas, sua integração com o Budismo e suas surpreendentes afinidades com tradições esotéricas como o hermetismo, o taoismo e a ciência moderna da consciência.
Espiritualidade anterior ao Buda
O Bön é considerado por seus praticantes como a tradição espiritual autêntica do Tibete, surgida muito antes da chegada do Budismo no século VII. Seus mestres mais antigos afirmam que sua origem não está apenas na Ásia, mas sim no reino mítico de Tazig, uma terra sagrada e invisível que guarda os ensinamentos de Tonpa Shenrab Miwoche, o fundador mítico do Bön, que teria vivido há mais de 17.000 anos.
Embora o Budismo Tibetano tenha inicialmente considerado o Bön uma prática “não ortodoxa”, estudiosos modernos reconhecem que o Bön possui sistema filosófico próprio, ritualística complexa, práticas meditativas refinadas, e textos sagrados autênticos. Hoje, é considerado uma das cinco tradições religiosas oficiais do Tibete.
Essa sabedoria ancestral preserva uma visão xamânica e cósmica da realidade, baseada na interação entre os elementos, os espíritos, os deuses e os ciclos naturais.
A cosmogonia bonpo
O universo como espiral de forças sutis
Na visão bonpo, o universo surge da emanação de forças primordiais conhecidas como Zhi, campos originários do espaço absoluto, semelhantes ao “Pleroma” gnóstico ou ao “Tao” chinês. Desses campos, surgem manifestações que criam o tempo, o espaço, os cinco elementos (terra, água, fogo, ar e espaço) e todos os reinos da existência.
A divindade primordial Kuntu Zangpo, o “Sempre Benevolente”, representa a pureza absoluta da mente e a origem luminosa de toda a existência. Essa figura ecoa o conceito do “Todo” hermético ou o “Ain Soph” cabalístico: uma consciência infinita, silenciosa e autoexistente.
Para o Bön, tudo é interdependente e cíclico. O sofrimento surge da ignorância dessa interconexão. A salvação, ou liberação, vem do reconhecimento da natureza verdadeira da mente e do realinhamento com o fluxo do universo.
Três níveis do ensinamento Bön
Do xamanismo ao Dzogchen
A tradição Bön se organiza em três grandes caminhos de prática, chamados de Yungdrung Bön:
Chashen (Práticas externas) – De caráter xamânico e ritualístico, busca curar doenças, afastar influências negativas, lidar com espíritos e harmonizar os elementos do corpo e do ambiente.
Chödré (Práticas internas) – De natureza ética e devocional, inclui ensinamentos sobre karma, renascimento, compaixão, comportamento moral e rituais de purificação.
Dzogchen (Grande Perfeição) – Caminho direto de realização espiritual, ensina que a natureza última da mente já é pura, luminosa e desperta. Não há nada a criar, apenas reconhecer.
Essa estrutura se assemelha às etapas de iniciação espiritual presentes em diversas tradições ocultas: primeiro a purificação, depois o alinhamento e por fim a fusão com o Absoluto.
Rituais, símbolos e práticas energéticas
Cânticos, oferendas e a dança da consciência
O Bön preserva uma rica herança ritualística que inclui:
Rituais de fogo para purificação kármica.
Trompas, sinos e tambores que invocam divindades e vibram os canais sutis do corpo.
Mandala de areia como mapa do cosmos interior.
Thangkas (pinturas) de divindades protetoras e budas primordiais.
Um símbolo central do Bön é o Yungdrung, uma suástica tibetana que gira no sentido horário, representando a eternidade da verdade e o movimento cíclico da consciência. Não deve ser confundido com o símbolo nazista, pois sua origem é infinitamente anterior e sagrada.
As práticas energéticas incluem respiração (Tummo), visualizações, mudras, mantras e posturas corporais. Tais práticas lembram o Pranayama hindu, o Qi Gong taoista e a alquimia interna da Rosa-Cruz.
O corpo sutil e os canais energéticos
O mapa oculto do ser humano
Assim como no Budismo Vajrayana, o Bön reconhece a existência de um corpo sutil composto por canais (tsa), vento (lung) e essência luminosa (tigle). Esses elementos formam a base da realidade psicoenergética do indivíduo.
A meditação Dzogchen atua diretamente nesses níveis, dissolvendo bloqueios, purificando emoções e permitindo o reconhecimento da mente como clareza inata, não-dual e autorreflexiva.
Essa cartografia interna coincide com os nadis e chakras hindus, os meridianos da medicina chinesa e os sefirot da Cabala. Em todos esses sistemas, o objetivo é o mesmo: alinhar o ser com a fonte cósmica.
A relação entre Bön e Budismo Tibetano
Sincretismo, tensão e reconciliação
Durante séculos, houve conflitos entre monges budistas e praticantes do Bön. Muitos mosteiros Bön foram destruídos, e seus textos ocultados. No entanto, com o tempo, especialmente após o exílio tibetano no século XX, o Bön foi reconhecido como uma tradição legítima e até adotou formas monásticas similares ao Budismo.
Ambas as tradições compartilham práticas como o Dzogchen, mas com linhagens distintas. Ambas possuem rituais tântricos, divindades protetoras, meditação silenciosa e aspirações de compaixão universal.
No fundo, o que diferencia é a cosmologia e o tom da prática: o Bön tem um caráter mais xamânico, telúrico e ligado à natureza, enquanto o Budismo tibetano tem uma ênfase mais filosófica e estruturada.
Bön e ciência moderna
A mente como espelho do universo
Praticantes do Bön que alcançaram o Dzogchen descrevem estados de consciência muito similares aos observados em estudos com monges tibetanos e mestres zen. Silêncio interno, ausência de ego, percepção direta da realidade e compaixão espontânea são relatos frequentes.
As técnicas de visualização, respiração e meditação do Bön já são alvo de pesquisas em neurociência, que reconhecem seus efeitos na regulação emocional, expansão da percepção e transformação da mente.
Além disso, a cosmologia bonpo, baseada em ciclos, forças invisíveis, interconectividade e múltiplas dimensões, ressoa com a teoria das cordas, campos quânticos e o modelo holográfico da consciência.
O Bön e o tempo cíclico da alma
A tradição Bön ensina que o tempo não é uma linha reta, mas um ciclo que se desdobra em espirais vibratórias. Cada ser vivente transita entre os reinos da existência, humano, animal, espiritual, infernal e celestial, de acordo com seu estado de consciência, ações e vínculos kármicos. Essa jornada é conhecida como khorwa, o ciclo do samsara, e não é encarada com pessimismo, mas como oportunidade.
Diferente de algumas escolas que tratam o renascimento como punição, o Bön vê cada vida como uma chance sagrada de libertação, desde que a pessoa desperte para a natureza primordial da mente. Por isso, os mestres bonpos dedicam-se a ensinar práticas que possam ser utilizadas no momento da morte, como o phowa (transferência da consciência), para ajudar o praticante a atravessar os bardos (estados intermediários) com lucidez e reconhecimento.
Essa visão coincide com o Princípio Hermético do Ritmo, onde toda alma passa por fluxos de ascensão e queda, lembrança e esquecimento. No Bön, compreender o ritmo das encarnações é compreender a dança da consciência com o próprio infinito.
A linhagem viva e os mestres do Bön
Apesar das perseguições históricas, o Bön nunca desapareceu. Sua transmissão oral e iniciática sobreviveu graças ao esforço de mestres dedicados que mantiveram os ensinamentos vivos em mosteiros escondidos, grutas de meditação e práticas solitárias em montanhas sagradas.
Entre os mestres mais importantes da era moderna está Tenzin Wangyal Rinpoche, reconhecido como um dos maiores divulgadores do Bön no Ocidente. Com uma linguagem acessível e profunda, ele introduziu práticas como o Yoga do Sonho, o Tsa Lung (respiração energética com posturas) e a meditação Dzogchen a milhares de estudantes no mundo todo.
Graças a esses mestres contemporâneos, o Bön ressurgiu com força renovada, sendo praticado hoje em países como Estados Unidos, Brasil, Alemanha, México, França e Nepal. Seus ensinamentos continuam a ser transmitidos de forma iniciática, respeitando a linhagem e o silêncio necessário para compreender sua profundidade.
Essa permanência, mesmo diante de séculos de opressão, demonstra que o Bön não é apenas uma religião, mas uma força arquetípica que pulsa no inconsciente coletivo da humanidade, preservando o elo entre o céu e a terra, entre o visível e o invisível.
Conexões esotéricas e herméticas
Uma ponte entre o visível e o invisível
O Bön compartilha elementos com várias tradições esotéricas do Ocidente e do Oriente:
Como o Hermetismo, afirma que “assim como é dentro, é fora”.
Como o Taoismo, entende a natureza como expressão do caminho invisível.
Como a Cabala, descreve planos sutis e caminhos para ascensão da alma.
Como o Xamanismo ancestral, honra os espíritos da terra, do céu e das direções.
Essas semelhanças indicam que o Bön guarda uma tradição de sabedoria primordial, anterior às separações religiosas. Sua linguagem pode parecer estranha aos olhos modernos, mas carrega chaves simbólicas para o despertar da consciência universal.
Conclusão: a sabedoria do vento
O Bön é o sussurro da montanha, a dança do fogo ritual, o sopro entre os mundos. É a memória viva de um tempo em que homem, natureza e espírito eram um só corpo, e onde o silêncio era compreendido como oração.
Num mundo cada vez mais afastado da natureza e da alma, o Bön nos lembra que a mente é como o céu, clara, vasta e intocável e que tudo o que se acumula é apenas nuvem. Ao dissolver o ego, ao respirar com o cosmos, ao meditar sem esforço, reencontramos o que sempre fomos: pura consciência.
“A mente natural é como o céu. Reconhecê-la é despertar.” (Ensinamento Dzogchen Bonpo)