Misteriosa, temida, incompreendida e muitas vezes injustamente demonizada, a Quimbanda é uma das vertentes mais complexas e profundas das tradições espirituais afro-brasileiras. Seu nome evoca os segredos da encruzilhada, os sussurros da noite e a sabedoria daqueles que trafegam entre os mundos com coragem, ética e consciência do próprio destino.
Ao contrário das visões populares equivocadas, a Quimbanda não é “magia negra”, mas sim um sistema espiritual autônomo, com raízes africanas, ameríndias e europeias, que trabalha com os mistérios da esquerda, os Exus, as Pombagiras, os Guardiões da força, da vontade e da verdade. Neste artigo, vamos penetrar nas camadas da Quimbanda original, resgatar seu valor simbólico, histórico e energético, e compreender como ela atua como um espelho da alma humana e um campo de autotransformação.
As Origens da Quimbanda: Do Mito ao Mistério
O Significado do Nome
O termo “Quimbanda” (ou Kimbanda) tem origens nas línguas bantas faladas por povos africanos das regiões de Angola e Congo. No idioma kimbundu, “kimbanda” era o título dado ao curandeiro, feiticeiro ou sacerdote, geralmente alguém que dominava os saberes ocultos, as ervas medicinais e os caminhos do mundo invisível. Com o passar dos séculos, a palavra passou a designar, no Brasil, um conjunto de práticas espirituais que não se encaixavam nos moldes do Candomblé ou da Umbanda tradicional.
Na raiz africana, o kimbanda era um mestre entre mundos, alguém que sabia transitar entre luz e sombra, céu e terra, vida e morte. Essa concepção permanece viva na Quimbanda brasileira, ainda que revestida de novos símbolos e contextos.
A Formação da Quimbanda no Brasil
A Quimbanda nasceu como uma estrutura de resistência e adaptação espiritual em um Brasil marcado pela escravidão, pela repressão religiosa e pela miscigenação cultural. No início do século XX, quando a Umbanda começou a se organizar como culto “branco”, “luz”, “evolutivo” e conciliador, surgiu a necessidade de separar os cultos considerados “pesados”, voltados às entidades da esquerda.
Essas práticas, que já existiam nos terreiros, passaram a ser chamadas de “Quimbanda”, não como um desdobramento da Umbanda, mas como um campo de atuação próprio, com foco nas energias telúricas, na resolução de conflitos terrenos, na afirmação da vontade e na revelação das paixões humanas.
Não há um fundador da Quimbanda, nem um livro sagrado. Ela é oral, dinâmica, feita de rituais, experiências e revelações diretas. Cada templo, cada tata, cada sacerdote desenvolve seu próprio fundamento a partir da tradição, dos pactos e do estudo.
Os Fundamentos da Quimbanda: Entre o Inferior e o Superior
A Cosmovisão Quimbandeira
Ao contrário do que muitos pensam, a Quimbanda não cultua o mal. Ela cultua a verdade nua e crua da existência, aquilo que as outras religiões tentam esconder ou reprimir. A Quimbanda reconhece que o ser humano é luz e sombra, amor e fúria, sexualidade e contenção, impulso e transcendência.
Diferente de sistemas que negam a paixão, o desejo ou o poder, a Quimbanda trabalha com essas forças de maneira ritualizada e consciente. Seus ritos buscam canalizar a energia vital de maneira eficaz, segura e justa.
Seus fundamentos repousam em três eixos principais:
O culto aos Exus e Pombagiras
Entidades que personificam aspectos do desejo, da comunicação, da justiça e da transformação. Eles não são demônios, mas forças arquetípicas que operam nos caminhos da matéria e do psiquismo.A sacralidade da vontade
Na Quimbanda, o poder pessoal, a decisão e o ato consciente são vistos como expressões da centelha divina. Não há salvação por submissão, mas sim por clareza de propósito.A encruzilhada como templo
O ponto de encontro entre caminhos é o altar sagrado da Quimbanda. Simboliza as escolhas, os dilemas, as oportunidades e os portais da alma.
As Entidades da Quimbanda: Vozes da Encruzilhada
Exus: Os Guardiões do Fogo e da Verdade
Na Quimbanda, Exu não é um diabo. Ele é uma força primordial de transformação e abertura de caminhos, muitas vezes erroneamente confundida com figuras demoníacas pela ignorância do senso comum ou pelo preconceito religioso. Exu é movimento, transgressão sagrada, riso diante do moralismo, guardião do limite entre mundos. É aquele que revela o que está oculto e testa o caráter humano.
Cada Exu tem uma história, um arquétipo e uma atuação específica. Alguns dos mais cultuados incluem:
Exu Tranca-Ruas: protetor das estradas e das decisões difíceis
Exu Caveira: mensageiro da morte, guardião dos portais da alma
Exu Marabô: elegante, sedutor e estrategista
Exu Sete Encruzilhadas: senhor dos múltiplos caminhos
Exu Veludo: discreto, refinado e profundo conhecedor das paixões humanas
Todos eles não incorporam o mal, mas a força crua da natureza humana e do universo material. Sua função é revelar, desmascarar, proteger e, quando necessário, cobrar.
Pombagiras: As Senhoras do Prazer e da Liberdade
Talvez as mais incompreendidas das entidades, as Pombagiras são expressões da liberdade feminina, da sexualidade sagrada, do empoderamento e da beleza como força espiritual. Não são “prostitutas espirituais”, como muitos ainda repetem com preconceito. Elas são faces arquetípicas de Vênus, Lilith, Afrodite e Iemanjá entrelaçadas, rainhas das emoções intensas e da autonomia do desejo.
Entre as mais conhecidas, estão:
Pombagira Maria Padilha: símbolo de sedução, sabedoria amorosa e força feminina
Pombagira Cigana: ligada ao oráculo, à dança e à ancestralidade errante
Pombagira Sete Saias: camaleônica, poderosa e dona de múltiplas camadas psíquicas
Pombagira Rainha: arquétipo da autoridade espiritual feminina plena
A atuação dessas entidades não se resume a amores ou conquistas: elas ajudam na reconstrução da autoestima, na libertação de traumas, no enfrentamento de abusos e na redescoberta do prazer como direito espiritual.
Outras Entidades: Malandros e Mirins
Alguns cultos de Quimbanda também incluem:
Malandros: figuras espirituais que representam a esperteza urbana, o humor crítico e o carisma popular. São como “tricksters” brasileiros, cheios de ginga, cigarro e malícia.
Exus Mirins e Pombagiras Mirins: arquétipos da infância rebelde, espontânea e muitas vezes traumatizada. São trabalhados com cautela, pois lidam com memórias profundas do psiquismo.
Essas entidades, quando cultuadas com responsabilidade, não “brincam”, trazem cura para feridas emocionais que poucas terapias conseguem tocar.
O Culto e os Rituais da Quimbanda
Ponto Riscado e Firmeza
Cada entidade da Quimbanda possui seu ponto riscado, um símbolo mágico traçado com pemba ou carvão durante os rituais. Esses pontos são verdadeiros códigos energéticos, ativadores de forças e portais vibracionais. Eles protegem, fortalecem, comunicam e canalizam as intenções dos trabalhos espirituais.
A firmeza de Exu, feita com velas, bebidas, ervas, objetos simbólicos e oferendas, é uma das práticas centrais. Diferente de despachos de amarração, a verdadeira Quimbanda trabalha para libertar, e não prender.
Trabalhos: Magia Simbólica e Ética Direcionada
Os chamados “trabalhos” podem ser realizados para abrir caminhos, cortar energias negativas, proteger pessoas, revelar verdades ou reequilibrar forças. Tudo é feito com intenção clara, fundamento espiritual e ética mágica.
É importante lembrar que o uso da Quimbanda para prejudicar, iludir ou dominar o outro foge do seu propósito original e muitas vezes acarreta consequências graves para o próprio praticante.
Vestimentas, bebidas e cantos
As vestes usadas em sessões costumam seguir os arquétipos das entidades, preto, vermelho, roxo ou dourado são cores comuns. As bebidas (como cachaça, champagne ou conhaque) não são apenas agrados: são elementos vibracionais que ancoram frequências específicas de Exus e Pombagiras. Os cantos, por sua vez, são mantras cantados em forma de ponto e possuem uma força evocativa impressionante, carregando memória ancestral e poder mágico.
Quimbanda, Umbanda e Candomblé: Três Caminhos, Três Sabedorias
Apesar de muitas vezes agrupadas sob o mesmo guarda-chuva das religiões afro-brasileiras, a Umbanda, o Candomblé e a Quimbanda possuem origens, objetivos e fundamentos distintos, cada qual com sua mística e sua missão espiritual.
A Umbanda nasceu no Brasil no início do século XX, como uma expressão espiritual conciliadora que uniu elementos do catolicismo popular, do espiritismo kardecista, das religiões afro e das tradições indígenas.
Suas entidades são compostas por guias espirituais, como Pretos-Velhos, Caboclos, Crianças e Marinheiros, além da reverência aos Orixás como forças cósmicas regentes. A finalidade da Umbanda é promover a caridade, a luz e o equilíbrio energético, trabalhando com passes, defumações, orações e cantos sagrados em rituais simples e acolhedores. Sua moralidade está enraizada no bem coletivo e na elevação do espírito por meio do serviço desinteressado.
O Candomblé, por sua vez, tem raízes africanas profundas, especialmente nas tradições iorubás, jejes e bantus. Não é uma religião sincrética, mas um culto ancestral de devoção aos Orixás, considerados verdadeiros deuses ou forças divinas da natureza, cada qual com seu arquétipo, elemento, dança, ritmo e assentamento específico.
Os rituais do Candomblé são complexos e altamente estruturados, envolvendo iniciações, obrigações, cantos em línguas africanas e oferendas rituais. A moralidade no Candomblé é construída em torno dos mitos ancestrais (os itans) e das obrigações rituais, prezando pela hierarquia, pelo axé e pela tradição oral transmitida pelos mais velhos.
Já a Quimbanda é um sistema espiritual que também se desenvolveu no Brasil, mas com um foco completamente diferente. De caráter mais direto e confrontador, a Quimbanda cultua os Exus, Pombagiras e outras entidades da chamada “esquerda espiritual”, como os Malandros.
Ela se volta para a resolução de conflitos, o despertar da força interior, o enfrentamento das paixões e a transformação da sombra psíquica em poder consciente. Seus rituais são feitos com firmezas, pontos riscados, bebidas, velas, ervas e símbolos mágicos. A moralidade da Quimbanda não se baseia em dogmas ou submissão ao bem coletivo, mas sim na ética da vontade individual, da responsabilidade pelo próprio destino e da liberdade com consciência mágica.
Esses três caminhos, embora distintos, compõem o grande mosaico espiritual brasileiro e revelam que não há uma única forma de se religar ao Sagrado, há, sim, diferentes portais, para diferentes almas, em diferentes momentos da jornada espiritual.
Quimbanda e a Ciência: Psicologia, Corpo e Sombra
A psicologia junguiana é uma das correntes que mais se aproxima da visão da Quimbanda. Carl Jung reconheceu que a sombra, tudo aquilo que reprimimos, precisa ser integrada, e não negada. Exu e Pombagira representam essa sombra: mostram o que há de mais humano, cru e transformador em nós.
Em um mundo onde todos querem parecer bons, a Quimbanda propõe: seja inteiro.
Além disso, estudiosos da psicologia arquetípica, da etnologia e da neurociência começam a investigar os efeitos das incorporações e dos rituais simbólicos em termos de cura emocional, liberação de traumas e reorganização do psiquismo.
Ao invés de serem lidas como “transe histérico” ou “superstição primitiva”, as giras da Quimbanda devem ser vistas como laboratórios espirituais de libertação emocional e empoderamento interno.
Prós e Contras: O Caminho de Encruzilhada
Prós:
Integração da sombra psíquica e espiritual
Liberação de traumas ligados à repressão sexual, moral ou familiar
Redescoberta do poder pessoal e da soberania interior
Forte enraizamento com o corpo, a terra e a ancestralidade
Estrutura mágica que permite resolução de problemas reais
Contras:
Preconceito social e religioso intenso
Risco de uso antiético por curiosos ou pessoas mal-intencionadas
Falta de padronização pode gerar rituais desconectados de fundamento
Associações errôneas com práticas negativas que mancham sua imagem
Dificuldade de acesso para quem busca apenas “espiritualidade leve”
Conclusão: A Quimbanda como Caminho de Verdade
A Quimbanda não é uma religião para todos. Mas para quem tem coragem de olhar para si com honestidade, mergulhar nas próprias paixões, aceitar a complexidade da alma humana e transmutar dor em potência, ela pode ser um dos caminhos mais transformadores já oferecidos pelo espírito humano.
Ela nos ensina que a escuridão não é inimiga da luz, é seu complemento. Que o desejo não precisa ser temido, mas entendido. Que a liberdade espiritual exige responsabilidade energética. E que os Exus e as Pombagiras não estão fora, estão dentro de nós, esperando que os chamemos, não com medo, mas com respeito e clareza.
“O caminho mais direto para a luz passa, inevitavelmente, pela sombra.” (Carl Gustav Jung)